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"Tive um irmão viciado em cocaína. Então sei muito sobre esse assunto". O depoimento é do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, no documentário Quebrando o Tabu , do diretor brasileiro Fernando Grostein Andrade. O filme, lançado no circuito nacional em junho, estimula o debate de um tema polêmico e delicado, que durante décadas foi tratado como tabu: a descriminalização do uso de drogas. O protagonista do documentário é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que divide cenas com Jimmy Carter, o médico Drauzio Varella, além de Bill Clinton (aquele que fumou mas não tragou) e muitos outros famosos de credibilidade.

A falência absoluta da guerra contra as drogas, que serve muito mais à violência e à corrupção do que à abstinência, e o grande erro de se tratar usuários como bandidos e não como doentes são a linha de condução do filme. Em um dos momentos, Ruth Dreiffus, que presidiu a Suíça em 1999, lança um argumento que comove qualquer um: "Quem são os dependentes? Nossas crianças... Pessoas que amamos". Com dados, indicadores, relatos de experiências bem e mal-sucedidas pelo mundo, Quebrando o Tabu tem o mérito que está explícito em seu próprio título - de pôr o dedo na ferida, única forma de descobrir remédios para tratá-la.

A disposição para discutir drogas de uma forma mais ampla, livre de preconceitos e estigmas, finalmente parece estar se tornando mais consistente. O documentário de Fernando Grostein mostra isso, assim como vozes de profissionais que ecoam em debates e palestras pelo País, defendendo uma política de redução de danos e tentando mostrar o outro lado de enxergar uma tragédia social. O psiquiatra baiano Antonio Nery é um dos que tem se destacado nessas saculejadas contra o torpor.

Idealizador do Consultório de Rua, para atender usuários de drogas, Nery é coordenador do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia.Sem meias palavras, costuma repetir que nada o irrita mais que o discurso de demonização das drogas. Ele se diz perplexo quando percebe que as mazelas do mundo estão sendo atribuídas aos entorpecentes, como se eles tivessem vida, sensibilidade, poder de decisão e ação. O psiquiatra inverte o foco e mostra que por trás da opção pelas drogas estão a miséria, a falta de perspectivas, a extrema exclusão social, a dor - isso sim a razão dos problemas. De outra forma, diz, é querer resolver pelo sintoma e não pela causa. "O crack é uma alternativa monstruosa para um sofrimento monstruoso", exemplifica.

É possível entender bem a preocupação de Antonio Nery diante do argumento mais usado pela polícia para justificar a explosão dos números da violência: "são as drogas". Em setembro, Goiânia atingiu um recorde histórico no número de homicídios. Foram 56 pessoas assassinadas no mês. Atribuindo a culpa às drogas, o recado que o poder público passa é de que não há nada a fazer. Mesmo porque, segundo a polícia, muitos dos mortos são "elementos envolvidos com drogas". As vítimas não têm nome e o problema não tem solução. Está explicado, justificado e ponto final.