Em 2009, publiquei vários artigos a propósito da repressão à Marcha da Maconha em Goiânia e outras cidades do Brasil (clique no marcador, ao final, para ler).Em um dos últimos, fiz referência às ações propostas pela Procuradora-geral da República então em exercício, Deborah Duprat, para que o Supremo Tribunal Federal se manifestasse pela legalidade desses eventos. Isso ocorreu praticamente dois anos depois, em 15 de junho último. Por falta de condições de manter o blog atualizado e também pela ampla cobertura da decisão, deixei de registrá-la aqui. Agora contudo, não posso deixar de registrar um fato memorável para uma abordagem local da questão das drogas com a profundidade necessária.
Refiro-me ao artigo de Silvana Bittencourt, editora-assistente de O Popular, publicado no sábado, dia 7 de outubro, Dedo na Ferida. Num artigo curto e envolvente ela conseguiu sintetizar uma enormidade de questões de forma inteligente e desapaixonada. É a primeira vez, que me recorde, que o tema tem um tratamento dessa natureza no jornal. Tanto é assim que o editorial do dia seguinte, ao invés de referir-se a uma reportagem do dia anterior, como é usual, tratou do tema do artigo, para reafirmar a visão corriqueira e acrítica do jornal (agora, com desconforto perceptível).
Leia abaixo o artigo e o editorial. Veja também a resposta de Rodrigo Pimentel, o comentarista de Segurança Pública da Rede Globo, quando foi perguntado sobre o tema em sua participação no Face a Face, em dezembro de 2010, e em entrevistas à revista Trip.
Da Redação
Dedo na ferida
Silvana Bittencourt
07 de outubro de 2011 (sexta-feira)
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"Tive um irmão viciado em cocaína. Então sei muito sobre esse assunto". O depoimento é do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, no documentário Quebrando o Tabu , do diretor brasileiro Fernando Grostein Andrade. O filme, lançado no circuito nacional em junho, estimula o debate de um tema polêmico e delicado, que durante décadas foi tratado como tabu: a descriminalização do uso de drogas. O protagonista do documentário é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que divide cenas com Jimmy Carter, o médico Drauzio Varella, além de Bill Clinton (aquele que fumou mas não tragou) e muitos outros famosos de credibilidade.
A falência absoluta da guerra contra as drogas, que serve muito mais à violência e à corrupção do que à abstinência, e o grande erro de se tratar usuários como bandidos e não como doentes são a linha de condução do filme. Em um dos momentos, Ruth Dreiffus, que presidiu a Suíça em 1999, lança um argumento que comove qualquer um: "Quem são os dependentes? Nossas crianças... Pessoas que amamos". Com dados, indicadores, relatos de experiências bem e mal-sucedidas pelo mundo, Quebrando o Tabu tem o mérito que está explícito em seu próprio título - de pôr o dedo na ferida, única forma de descobrir remédios para tratá-la.
A disposição para discutir drogas de uma forma mais ampla, livre de preconceitos e estigmas, finalmente parece estar se tornando mais consistente. O documentário de Fernando Grostein mostra isso, assim como vozes de profissionais que ecoam em debates e palestras pelo País, defendendo uma política de redução de danos e tentando mostrar o outro lado de enxergar uma tragédia social. O psiquiatra baiano Antonio Nery é um dos que tem se destacado nessas saculejadas contra o torpor.
Idealizador do Consultório de Rua, para atender usuários de drogas, Nery é coordenador do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia.Sem meias palavras, costuma repetir que nada o irrita mais que o discurso de demonização das drogas. Ele se diz perplexo quando percebe que as mazelas do mundo estão sendo atribuídas aos entorpecentes, como se eles tivessem vida, sensibilidade, poder de decisão e ação. O psiquiatra inverte o foco e mostra que por trás da opção pelas drogas estão a miséria, a falta de perspectivas, a extrema exclusão social, a dor - isso sim a razão dos problemas. De outra forma, diz, é querer resolver pelo sintoma e não pela causa. "O crack é uma alternativa monstruosa para um sofrimento monstruoso", exemplifica.
É possível entender bem a preocupação de Antonio Nery diante do argumento mais usado pela polícia para justificar a explosão dos números da violência: "são as drogas". Em setembro, Goiânia atingiu um recorde histórico no número de homicídios. Foram 56 pessoas assassinadas no mês. Atribuindo a culpa às drogas, o recado que o poder público passa é de que não há nada a fazer. Mesmo porque, segundo a polícia, muitos dos mortos são "elementos envolvidos com drogas". As vítimas não têm nome e o problema não tem solução. Está explicado, justificado e ponto final.
08/10/2011
A face da violência
O Brasil está em vexatória classificação no campeonato mundial da violência, o 26º, de acordo com o Estudo Global de Homicídios promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU). Isto significa um nível perturbador de manifestação de violência, gerando índice de 22,7 casos de homicídio para cada 100 mil habitantes.
O estudo da ONU mostra que as primeiras posições nesse ranking tão negativo são ocupadas por Honduras (82,1), El Salvador (66) e Costa do Marfim (56,9).
O levantamento da ONU comprova que as disparidades de renda constituem traço muito forte na matriz da violência.
Em Goiás, onde o número de homicídios vai crescendo em velocidade assustadora, a exclusão educacional é outro fator a pesar muito. E, nos últimos anos, o tráfico e o consumo de drogas formam uma causa em larga escala nesta questão.
O envolvimento com drogas fez aumentar muito, em Goiás, o número de homicídios dos quais são vítimas jovens. Que chegam agora a ser a maioria entre as pessoas assassinadas.
Investir mais na educação e combater com maior eficiência o tráfico de drogas, não permitindo que a sensação de impunidade continue na mente dos criminosos, eis duas grandes prioridades que acabam não se transformando em uma vigorosa atenção do setor público. E, sendo assim, não há como esperar resultados e reversão desse dramático quadro.
O estudo da ONU mostra que as primeiras posições nesse ranking tão negativo são ocupadas por Honduras (82,1), El Salvador (66) e Costa do Marfim (56,9).
O levantamento da ONU comprova que as disparidades de renda constituem traço muito forte na matriz da violência.
Em Goiás, onde o número de homicídios vai crescendo em velocidade assustadora, a exclusão educacional é outro fator a pesar muito. E, nos últimos anos, o tráfico e o consumo de drogas formam uma causa em larga escala nesta questão.
O envolvimento com drogas fez aumentar muito, em Goiás, o número de homicídios dos quais são vítimas jovens. Que chegam agora a ser a maioria entre as pessoas assassinadas.
Investir mais na educação e combater com maior eficiência o tráfico de drogas, não permitindo que a sensação de impunidade continue na mente dos criminosos, eis duas grandes prioridades que acabam não se transformando em uma vigorosa atenção do setor público. E, sendo assim, não há como esperar resultados e reversão desse dramático quadro.
Marcus, o artigo da Silvana é excelente mesmo! Já havia lido antes, mas faço questão de registrar aqui minha opinião. Da mesma forma, o seu texto de introdução é coerente ao expor o desconforto do editorial do dia seguinte, fundamentado na retórica cega de sempre. Haroldo Caetano
ResponderExcluirAgradeço pelo comentário, Haroldo.Ter uma opinião abalizada como confirmando a importância do artigo é um grande estímulo para continuar tratando do tema, que aliás, é para ontem.
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