23 maio, 2009

SOBRE FUTEBOL, CERVEJA, MÍDIA E SEGURANÇA PÚBLICA

Haroldo Caetano da Silva*

Jornal Nacional – 1° bloco:

Diz a apresentadora, de olhar simpático e toda sorrisos: “Ronaldo, o Fenômeno, volta a brilhar nos estádios brasileiros! Em seu retorno triunfante para os campos de futebol, Ronaldinho é o grande destaque do Corinthians na conquista do Campeonato Paulista de 2009”. E a matéria prossegue com entrevistas, as imagens dos belos gols e a festa da vitória.

Intervalo comercial:

Num filme de 30 segundos, o mesmo craque, novamente campeão, tem uma conversa intimista com o telespectador: “Tudo o que eu conquistei na vida foi com muito suor, como todo guerreiro”. Na tela, imagens das vitórias nos diversos campos de sua vida, até que chega o grand finale: “Mas eu sempre dei a volta por cima. É... Não é fácil. Mas o que é suado tem mais sabor”. E, batendo com o punho no peito, arremata: “Eu sou brahmeiro”.

Jornal Nacional – 2° bloco:

Agora é a vez do apresentador, de olhar e voz severos, sobrancelhas carregadas, trazer outra notícia: “Motorista embriagado atropela e mata cinco pessoas de uma mesma família”. Enquanto rodam as imagens da tragédia, com os destroços do carro, aparecem no seu interior algumas latas de cerveja. Cerveja Brahma. E continua o apresentador: “Em visível estado de embriaguez, o motorista, um rapaz corintiano de apenas 18 anos de idade que comemorava a vitória de seu time no campeonato, não conseguiu controlar o carro, que avançou sobre o ponto de ônibus e atropelou toda uma família, provocando a morte de um homem de 45 anos, sua esposa de 40 e os três filhos, de 15, 5 e 3 anos. As vítimas chegaram a ser socorridas, mas morreram a caminho do hospital”.

Dessa breve história, num misto de ficção e realidade, observa-se que os fatos são apresentados de forma isolada, sem qualquer relação entre si. A embriaguez do rapaz de 18 anos, a tragédia derivada do consumo de cerveja, seriam fatos sem qualquer relação com a propaganda do brahmeiro, ídolo nacional e atleta do nosso esporte mais popular, cujo sucesso era celebrado no bloco anterior do noticiário.

Toda a tragédia é imputada exclusivamente ao rapaz, bêbado, que é apontado como único responsável pelas mortes. Afinal, na técnica do direito penal, os chamados antecedentes causais terminam na conduta do motorista que, embriagado, seria o único culpado pelo crime. E na matéria jornalística não há espaço para qualquer menção ao estímulo maciçamente dado àquele jovem, desde sempre, para consumir bebida alcoólica. As cervejarias, as agências de propaganda, os meios de comunicação (que se sustentam com essa publicidade) saem imunes... E a propaganda do brahmeiro, embalada pela nova conquista do Fenômeno, se repete no intervalo seguinte.

Mas você pode estar se perguntando: – E daí? O que isto tem a ver com segurança pública? Qual o sentido de se trazer essa história para um artigo de jornal?

É que para conhecer o fenômeno, não o craque de futebol, convém esclarecer, mas sim o da violência e da criminalidade; e ao mesmo tempo propor caminhos e soluções sustentáveis e que escapem da mesmice que há muito tem se apresentado como solução para tudo no Brasil (leia-se: a panaceia em que se transformou o direito penal, com centenas de propostas de alteração legislativa para o agravamento das penas e para a inclusão de novos tipos penais), impõe-se ver um pouco além da dogmática e de algumas verdades estabelecidas, verdades que não se sustentam ao primeiro sopro de lucidez ou de investigação crítica.

Importa, pois, além da responsabilização criminal de condutas censuráveis, entender que violência e criminalidade são assuntos de interesse também de outros setores, distintos do campo de alcance do direito penal. E que medidas em outras áreas da vida em sociedade e da ação do Estado podem promover, em muitos casos com melhores resultados, segurança, paz e justiça social.

Importa reconhecer, por exemplo, que o estímulo precoce ao consumo dessa poderosa droga que é o álcool, com a vergonhosa e absurda veiculação de campanhas publicitárias agressivas, em grande parte destinadas a crianças e adolescentes, traz conflitos e problemas de toda sorte, para o usuário, seus familiares, vizinhos e toda a comunidade ao final das contas, como no caso da tragédia fictícia acima descrita, cuja ocorrência poderia ser relatada, tal é a frequência com que acontece, em qualquer cidade brasileira, mesmo as pequenas e que estão distantes das metrópoles.

Mas importa lembrar, ainda, que soluções no regime democrático devem trilhar o caminho da garantia de direitos e não sua restrição autoritária, como por vezes testemunhamos ocorrer. Como, por exemplo, no caso de Goiás, em que se propõe a restrição dos horários de funcionamento de bares como solução para a violência urbana ou, também, a proibição da livre expressão do pensamento, como na recente proibição à Marcha da Maconha, proibição que não tem cabimento no regime democrático.

A garantia de direitos produz harmonia social e sua efetivação traz, sim, segurança pública, paz, tolerância às diferenças. Direitos como o acesso a uma educação de qualidade desde os primeiros anos da criança na escola; o acesso a serviços decentes de saúde pública; o acesso facilitado à justiça ou a políticas de inclusão ao emprego, à moradia, ao lazer; o respeito à dignidade humana do delinquente e do preso. E quanto mais o Estado brasileiro caminhar nesse sentido, menor será a necessidade da utilização da norma penal como solução principal para os conflitos da sociedade. E o direito penal deve, assim, servir-se para o aquilo a que se destina: como ultima ratio, como resposta residual na solução dos conflitos.

*HAROLDO CAETANO DA SILVA
PROMOTOR DE JUSTIÇA
haroldocaetano@gmail.com

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