A grande questão, neste caso envolvendo a presidente do TRE, assim como em relação à atuação do Ministério Público, é a independência entre os poderes. O tema foi abordado em um artigo excelente, publicado em O Popular, no ano passado, pelo Procurador de Contas junto ao TCM, Fabrício Motta:
Montesquieu e a impunidade das autoridades
Fabrício Motta
Com algum desânimo, mas sem qualquer surpresa, ontem lemos neste jornal a informação de que não há nenhum caso de condenação criminal de autoridades pelo Supremo Tribunal Federal desde 1988, e que em nosso Estado houve apenas uma condenação – por acidente de trânsito - de autoridade que possui foro privilegiado, dentre as 120 denunciadas desde 2003. A prerrogativa de foro encontra-se, sem dúvida, consagrada em nosso sistema constitucional. Contudo, o que em uma República que mereça esse qualificativo deveria ser interpretado como prerrogativa da função acabou se tornando um privilégio pessoal, um contrasenso, talvez uma afronta. Um alienígena que hoje desembarcasse em nosso país, sem conhecer a história da formação (ou deformação) do nosso espírito público, que estivesse disposto a entender a lógica da distribuição de competências para julgar as autoridades em nosso sistema, com certeza ficaria perplexo. Talvez se perguntaria qual é a vantagem existente na supressão de uma instância recursal; não entenderia o interesse em ser julgado por um colegiado superior e perder uma possibilidade a mais de tentar reverter o julgamento, em caso desfavorável, pois quanto mais se aproxima do topo menos recursos existem. Alguém deveria explicar ao alienígena que costumamos atribuir a culpa a um barão francês, Montesquieu, muito embora o mesmo nada tenha a ver com isso. O fato é que a divisão e partilha dos poderes, pregada por Aristóteles, Locke e Rousseau, dentre outros, mas difundida com maior sucesso na concepção de Montesquieu, foi cuidadosamente esculpida em nossa Constituição para que os poderes sejam mais harmônicos que independentes. Confiram alguns exemplos, sem pensar em nomes, nem em situações concretas: os Governadores, como regra, são julgados por Tribunais. Na composição dos tribunais de justiça existe um “quinto” constitucional, preenchido por integrantes da advocacia e do Ministério Público. As instituições somente fazem uma lista com os seus indicados, mas quem escolhe é o Governador. Os Tribunais de Justiça também julgam os Prefeitos, alguns ligados aos Governadores. O Procurador-Geral de Justiça, chefe do Ministério Público, que possui competência para algumas importantes ações ligadas aos políticos de maior calibre (como Governador e Deputados, por exemplo) também é escolhido pelo Governador, que pode ignorar a vontade da instituição, indicando o menos votado em uma lista previamente feita. O Procurador-Geral da República é livremente escolhido pelo Presidente, dentre os integrantes do Ministério Público. Os Ministros da mais alta corte de justiça, que julgam os processos mais importantes que envolvem o Presidente da República, são escolhidos pelo mesmo Presidente, que ainda escolhe parte de ministros do STJ e do Tribunal de Contas da União. O sistema de promoções e acesso aos tribunais por mérito muitas vezes é conduzido na surdina, às escuras, podendo privilegiar amigos e ignorar inimigos. Mérito pessoal, dedicação e honestidade podem não ser decisivos, nesses processos – mais vale um bom trânsito político e um selecionado círculo de amizades. A regra se repete em todas as esferas: sempre há alguém, com alguma ligação com o meio político, entremeado nos tribunais, colocando em cheque a tranqüilidade necessária à isenção dos julgamentos. Chega-se a uma função importante comumente sendo devedor de algum favor; fica, ainda que em estado de hibernação, criado um vínculo psicológico de estima e gratidão – e a ingratidão é o pior dos defeitos, diria um filósofo. Além disso, infelizmente, o processo orçamentário e financeiro é fielmente guardado e comandado pelo Executivo: o sistema não privilegia a independência das instituições, mas algumas vezes obriga-as a rebaixar-se, sob pena de perecimento. Direta ou indiretamente, todas dependem da competência, da altivez e da boa intenção daquele que está com as chaves do cofre. A necessária interpenetração das funções, para que exista um mecanismo de freios e contrapesos e para que nenhum dos poderes se sobreponha aos outros, cedendo ao apelo sedutor do arbítrio, parece ter sido cuidadosamente imaginada para andar em círculos, sem rumo definido, de forma que tudo fica bem para todos que estão no poder. Vem à lembrança o canto popular de Dominguinhos: “olha que isso aqui tá muito bom, isso aqui tá bom demais; olha, quem tá fora quer entrar, mas quem tá dentro não sai”. Não é necessário apontar nomes ou criticar os que, ao seguirem este enredo, estão talvez simplesmente cumprindo a Constituição. Se nada for mudado, é mais fácil continuar culpando Montesquieu e deixar que ele se remexa em seu túmulo.
Fabrício Motta é Procurador do Ministério público junto ao TCM-GO; Doutor em Direito do Estado pela USP e Presidente do Instituto de Direito Administrativo de Goiás.
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