As barragens nossas de cada dia
Washington Novaes
O rompimento da barragem de uma hidrelétrica no Rio Corrente – com a destruição de duas pontes rodoviárias e a inundação de casas e 140 quilômetros quadrados de culturas – impõe mais algumas reflexões sobre o setor elétrico, além das já expostas neste espaço (31/1/08), a propósito da entrada em operação de duas termoelétricas em Goiás.
Como noticiou este jornal, o rompimento foi atribuído pela empresa ao “aumento da vazão do rio com as chuvas”, que levou o nível médio da água a “ultrapassar a média histórica” em mais de 100%. Porém moradores da região, vereadores e o próprio prefeito de Aporé lembraram que várias pessoas já mencionavam a existência de uma “trincadura” perto do vertedouro da barragem. O vereador Jobal Veloso Filho chegou a dizer que ele mesmo e outras autoridades municipais conversaram com os responsáveis pela usina: “Eles falavam que iam tomar providências e nada resolveram” (O POPULAR, 1/2/08). O Ministério Público pediu uma perícia na barragem.
É preciso discutir muito a questão. Mesmo que o rompimento se tenha devido a um aumento do volume de água acima da média histórica, é preciso lembrar que, mesmo em meses onde a média se mantenha, acontecem momentos de acúmulo extremado de água, por causa de mudanças no formato de chuvas – que, devido às mudanças climáticas, podem precipitar altos volumes em curtos períodos de tempo. E em Goiás, no mês de janeiro (O POPULAR, 2/2/08), os 276 milímetros de chuva ainda estiveram abaixo da média histórica de 280 mm (nos mesmos dias em que aconteceram os problemas com essa barragem goiana, em vários pontos de Santa Catarina, por exemplo, choveu em poucas horas mais que a média histórica do mês no Estado; em São Francisco do Sul, foram 183,8 milímetros – ou 183 litros por metro quadrado de solo – em 12 horas; em São José, 124,4 milímetros; em Itaqui, 100 milímetros; em Florianópolis, 78 milímetros).
Como diz o povo, “as chuvas não são mais como antigamente”, quando altos volumes de água dependiam de precipitação fina e constante durante dias inteiros seguidos. E isso exige a revisão dos padrões construtivos em pontes e rodovias (para evitar o que agora acontece em todos os períodos chuvosos, quando dezenas delas são arrastadas pelas águas concentradas em poucas horas). Talvez também em barragens – principalmente se se lembrar que em Goiás, só entre 2001 e 2006, entraram em operação 8 das 11 hidrelétricas previstas com mais de 30 MW de potência (e mais duas dependiam de licença ambiental). Será preciso juntar órgãos ambientais do Estado, instituições das áreas de engenharia e arquitetura, universidades e órgãos meteorológicos para definir parâmetros que tranqüilizem a sociedade e evitem prejuízos que ela pagará, com a destruição de obras públicas e propriedades privadas.
Barragens não são problema apenas em Goiás ou no Brasil. Já há anos a Comissão Mundial de Barragens vem advertindo para os problemas decorrentes da proliferação desse tipo de obras. Só barragens com mais de 15 metros de altura são 45 mil no mundo. Com altura menor, centenas de milhares, talvez milhões. Só as 45 mil retêm um volume de água três vezes superior a todo o fluxo superficial no Planeta. Isso gera muitos problemas. Na implantação, costuma desalojar populações inteiras. Implica também mudanças nos regimes hidrológicos, por causa do alto nível de evaporação da água concentrada nos reservatórios. Provoca falta de água a jusante nos períodos mais secos, quando se reduz o fluxo vertido.
Uma das conseqüências mais problemáticas, nas regiões tropicais, está na eliminação, nos reservatórios, dos hábitats de muitos vetores de doenças, sua disseminação por outras áreas e até sua urbanização (como se suspeita agora com a febre amarela). Na Usina de Tucuruí, no Rio Tocantins, por exemplo, foram desalojadas dezenas de milhares de pessoas e a malária se disseminou por outras partes, após a inundação de mais de 1.700 km2 de floresta. Em Serra da Mesa, 42 quilômetros do rio ficaram secos durante mais de dois anos, proliferou o garimpo ilegal no leito seco, expandiu-se a malária. E como foram inundadas as cavernas que abrigavam morcegos, a raiva bovina e até humana se espalhou – sem falar em que o reservatório da barragem, onde se começam a implantar projetos de piscicultura, recebe os esgotos de muitas cidades da região (que estão provocando a proliferação de algas e eutroficação das águas).
Como já se observou em comentários anteriores, este momento precisa ser aproveitado para implantar uma discussão séria sobre o modelo energético brasileiro. Não se pode continuar – atendendo apenas à lógica financeira de megaconstrutoras de usinas e de empresas produtoras e distribuidoras de energia – com a implantação quase frenética de novas usinas, quando estudos sérios como os da Unicamp e outros mostram que podemos economizar até 50% da energia que consumimos no País. De 10 a 15% imediatamente, com programas de eficiência e conservação de energia.
Neste momento, a conta já vai custar caro para o consumidor. Como não economizamos, colocam-se em funcionamento as caríssimas usinas termoelétricas. E como informou este jornal (2/2/08), “a Conta de Consumo de Combustíveis pode subir este ano 32,5%, passando de R$ 2,87 bilhões para R$ 3,79 bilhões, com o subsídio para compra de óleo diesel para usinas termoelétricas”. Esse custo é rateado pelas contas de energia de todos os consumidores, inclusive dos que lêem estas linhas.
Não bastasse tudo isso, a “febre” de geração de energia destina-se a atender em boa parte ao consumo dos setores chamados de “eletrointensivos”, grandes consumidores de energia, como os produtores de alumínio e ferro gusa, que ainda recebem subsídios e pagam menos que os outros consumidores (que têm de arcar com a diferença em suas contas). Só que a maior parte da produção desses setores está voltada para a exportação, destinada a países que não querem produzir alumínio nem ferro gusa, por causa de seus altos custos ambientais e sociais. Então, transferem-no, sem nenhuma remuneração adicional, para cá (como fazem a Europa, o Japão e outras regiões). No caso de Tucuruí, o governo federal (a sociedade brasileira) arcou com os altíssimos custos de implantação da usina e subsidiou durante 20 anos a energia para esses setores, a um custo superior a US$ 2 bilhões, transferido para a conta de todos os consumidores brasileiros. Terminados os 20 anos, o contrato foi renovado, com um subsídio um pouco menor, mas ainda muito alto.
É preciso repetir e repetir: se a sociedade brasileira, em todos os lugares, não aprender a se organizar para discutir esses temas, transformá-los em plataformas políticas e cobrá-los dos candidatos nas eleições, não haverá como solucionar as graves e preocupantes questões que nos atropelam todos os dias.
Washington Novaes é jornalista.
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