Como um dos privilegiados que tiveram a atividade de escritório alterada para o teletrabalho, há quatro meses eu vinha vivendo no maior isolamento possível, saindo do apartamento apenas para fazer compras e, vez ou outra, deixar algo na casa de parentes. Minha janela para o mundo exterior eram os funcionários do prédio, os jornais, a tv, podcasts, o twitter e o youtube. Até que na terça-feira, 7 de julho, uma notícia me forçou a romper essa bolha protetiva e entrar na realidade da Covid-19 em Goiânia.
Soube que uma tia, viúva, com 72 anos e hipertensa, tinha apresentado sintomas de Covid-19 uma semana antes. Ela havia procurado atendimento médico no domingo, tomou oxigênio no pronto-socorro do Hospital Samaritano, foi liberada e voltou para casa, onde estava desde então. Se a situação já era preocupante, tinha piorado: ela não estava mais atendendo às ligações de familiares.
Combinei com primas e tias que iria à casa dela para saber do seu estado e convencê-la a ir novamente para um pronto-socorro, avaliar como tinha evoluído desde domingo. Uma prima se encarregou de verificar qual seria a melhor opção de atendimento naquele momento para usuários do Ipasgo, como é o caso dela, professora aposentada.
Chegando ao prédio, foi preciso o porteiro chamar bastante para que atendesse. Porém, após ele pedir autorização para minha subida, ela não disse mais nada. Telefonei; ela felizmente atendeu e após meu pedido, finalmente autorizou minha entrada.
A porta do apartamento estava aberta. Chamei por ela e seguindo sua resposta a encontrei no quarto, deitada, na penumbra, com uma fresta da janela aberta. Ela usava máscara e tinha uma tosse miúda. Falava baixo. Estava bem enfraquecida pela doença. Eu estava com uma máscara caseira e um protetor facial transparente, artesanal, que ganhara de minha melhor amiga.
Fiquei à porta e fiz um longo e pausado questionário sobre como se sentia: febre, dores nas costas e uma bola no peito, falta de ar, dor de cabeça. Me contou, então, que parou de atender às ligações porque ficou ressentida com o tom das recomendações feitas sobre como deveria proceder, que achou invasivas. A médica que a atendeu no domingo tinha feito o pedido do exame RT-PCR e na segunda-feira ela foi ao laboratório para a retirada da amostra.
De quando em vez, eu fazia uma interrupção para ir à varanda, na sala, para ficar próximo à janela aberta e passar as informações à família. No protocolo do laboratório o resultado era previsto para dali a cinco dias. Insisti ao longo de quase duas horas para irmos ao hospital, inutilmente. Ela disse que já estava melhor com os remédios que haviam sido receitados e foram caros, ia terminar de tomá-los e acreditava que ia sarar.
Pelo menos aceitou ligar para uma prima, em horários determinados, todos os dias, para que soubéssemos como estava. Não precisava de nada, tinha comida em casa. A primeira chamada deveria ser naquela noite. Redigi uma autorização para ter livre acesso na portaria e ela assinou. Concordou em desmarcar a faxineira, que iria no dia seguinte.
Quando cheguei ao carro e tirei a máscara, minha melhor amiga me ligou. Fiquei consternado enquanto contava como tinha sido: a recusa dela em ir para o hospital, sua fragilidade naquele leito na penumbra. Agora, era torcer para que melhorasse ou que a prima para quem ela ligaria conseguisse convencê-la a buscar ajuda médica.
Logo que cheguei em casa a prima ligou: assim que eu saí do apartamento, a tia tinha ligado para ela. Avisou que ia fazer as ligações como combinado. Quando melhorasse, iria se consultar com um especialista.
Passava um pouco mais de 18 h, mas com a ajuda da secretaria atenciosa de uma clínica de infectologia consegui marcar uma consulta com um pneumologista para o dia seguinte, à tarde. Minha prima avisou imediatamente minha tia. Ela recusou, mas disse que pensaria a respeito. Segunda vitória.
Ela deveria ligar para a prima às 8:30h, horário que escolheu. Pouco antes das sete acordei com o telefone tocando. Eu tinha deitado bem tarde: finalmente comecei a fazer o curso de Rastreamento de Contato de Covid-19 da Universidade Johns Hopkins, de que soubera pelo podcast Luz no Fim da Quarentena, fazia tempo.
Minha prima, aflita, contou que a tia tinha acabado de ligar dizendo que teve diarreia a noite toda, mal dormiu, falou "pode marcar a consulta" e não disse mais nada, nem desligou o telefone. Combinei que me vestiria e iria imediatamente ao apartamento dela. Antes que terminasse, a prima ligou novamente, aliviada: tinha recebido outra ligação - a tia avisou que ia tomar um banho e me esperaria no horário marcado para irmos à consulta.
A notícia foi passada no grupo de zap criado no dia anterior, comigo, primas e tias. Alívio por ela ter concordado em ir ao médico, preocupação pela mudança dela decorrer da piora do seu estado.
Duas horas depois, o telefone tocou insistentemente. Era outra prima, avisando que conseguira convencer a tia a ir para o pronto-socorro. Saí imediatamente. Já sabia que a melhor alternativa era uma ambulância pois além de ter o atendimento da equipe, ao chegar ao hospital não precisaria passar pela recepção. Ao parar nos sinaleiros, acompanhava as mensagens da prima, que tentava conseguir a ambulância. Sem chances pelo SAMU ou Bombeiros. Particular, somente se já tivesse o local de internação definido e autorizado. Restava a alternativa do dia anterior: irmos de carro mesmo para o pronto-socorro.
Ela já estava pronta quando cheguei. Pegamos seus remédios e os da filha pré-adolescente, que estava com amigos desde o fim de semana. Dispensou a ajuda para caminhar. Fomos lentamente, seguindo seu passo lento pela dificuldade respiratória. Em quinze minutos chegamos ao Hospital Anis Rassi. Em vinte passou pela enfermeira da triagem, que fez a anamnese e mediu sua oxigenação.
Na recepção, sentei ao lado dela, na longarina que tivera os assentos interditados alternadamente, para assegurar maior distância entre as pessoas. Como estava fraca, conversamos pouco enquanto esperávamos na sala cheia, com o ar-condicionado ligado. Ela não quis comer nada. Baixei a fatura do cartão de crédito no celular dela, a seu pedido. A sala estava cheia. As recepcionistas usavam apenas máscaras N-95, atrás do vidro, cujas aberturas tinham sido lacradas com fita transparente. .
Mais uma hora e meia esperando e foi chamada pela médica, que como a enfermeira, vestia máscara N-95, protetor facial, luvas e capote. Não era permitido acompanhante na consulta. O cenário era de ficção científica, como já tinha visto em reportagens sobre hospitais onde são tratados pacientes graves de Covid, da TV Folha ( Vidas em Jogo e A linha de Frente), do Profissão Repórter e do programa Frontline ( Coronavirus Pandemic , Inside Italy's Covid War e The Last Call)
Meia hora depois a médica me chamou e explicou que a condição dela tinha piorado desde domingo. Ficaria em observação enquanto outros exames eram feitos e aí avaliaria se a internação seria em UTI ou enfermaria. Permitiu que eu fosse até a maca onde já estava com oxigênio. Conversei um pouco com a tia para deixá-la mais tranquila. Saí e fiquei esperando na calçada, ao ar livre.
Aproveitei e caminhei até o Biscoito Pereira, na Tamandaré. Almocei um salgado e um suco, num banco da praça, onde pude descansar as orelhas do elástico da segunda máscara do dia, que troquei antes da tia ser atendida pela médica. Caminhei pela República do Líbano deserta, com os cinco estrelas vazios, a Justiça Federal e os bancos sem movimento, e fiquei aguardando num banco da Praça do antigo Hospital São Salvador.
Já era fim de tarde quando me ligaram dizendo para ir à recepção. A médica havia prescrito a internação em UTI. Eu deveria aguardar para assinar a autorização mas antes era preciso o resultado positivo do RT-PCR, pré-condição para a internação.
Começou a segunda saga. Primas ligando no laboratório para conseguir que o resultado saísse logo. Depois de muitas tentativas, nos resignamos: seria impossível. Tentaríamos de manhã. Ao longo do tempo que fiquei lá, um paciente chegou com 20% da capacidade pulmonar. Era idoso e estava em casa há uma semana, com sintomas, mas não quis ir pro hospital, segundo o irmão. Parecia que o caso estava perdido... Era idêntico ao caso de um professor da UFG que sairia no jornal três dias depois, no sábado. Logo após, um carro chegou com uma mulher desmaiada. Estava com o marido e duas filhas. Depois que três enfermeiras a tiraram do carro, colocaram numa cadeira de rodas e levaram para atendimento, o marido me disse que ela estava sem sintoma nenhum, mas depois do almoço tivera falta de ar e foi piorando até desmaiar. Voltei para casa, usando minha quarta máscara do dia e com as orelhas ardendo.
Perdi o sono e aproveitei para terminar a primeira parte do curso de rastreamento. Aprendi sobre o vírus e a doença, cujo período de incubação varia entre dois e 14 dias mas normalmente é de cinco dias; e o período infeccioso, em que o doente transmite a doença, que começa ainda na incubação, dois dias antes de aparecerem os sintomas e se prolonga enquanto estiver doente, normalmente dez dias, podendo ir além. A maioria dos doentes apresenta sintomas brandos ( febre acima de 38 graus, tosse, dores de cabeça e no corpo) e se cura por conta própria, tendo o cuidado de manter-se hidratado. Precisa isolar-se em casa, separado do restante da família, para não infectá-los (autoisolamento). É preciso buscar assistência médica imediatamente em caso de apresentar lábios ou rosto azulados, dor ou pressão persistente no peito, dificuldade para respirar, confusão ou incapacidade para despertar. O contactante é alguém que ficou por mais de 15 minutos a menos de dois metros de uma pessoa em fase infecciosa ou ficou a uma distância maior, mas por tempo prolongado, no mesmo ambiente, ou teve contato físico direto com ela ou com suas secreções respiratória. Neste caso, é preciso fazer quarentena, ficar em casa por 14 dias, sem sair, para o caso de vir a ficar doente e assim não contaminar outras pessoas antes de aparecerem os sintomas, principalmente. O doente precisa ser acompanhado, para o caso de piorar, e para saber quando já está recuperado (a partir de dez dias, desde que os sintomas passem e não tenha febre por três dias seguidos); o contactante, para o caso de aparecerem sintomas, passando a ser doente.
O trabalho do rastreamento é diminuir o contágio, buscando rapidamente identificar os contactantes de alguém que é diagnosticado como doente e convencê-los a fazer a quarentena o quanto antes, para evitar que, se tiverem sido infectados, passem a doença adiante, em especial por conta da transmissão começar dois dias antes de aparecerem os sintomas.
A pequena distância entre as pessoas na recepção lotada - mesmo com a interdição das cadeiras - e ter passado duas horas naquele ambiente fechado, cuja porta aberta não me parecia suficiente para assegurar a circulação de ar, agora me pareciam ter sido um risco desnecessário... E ter visto, da última vez que entrei na recepção, que havia um painel com os diagnósticos das cerca de 16 pessoas aguardando atendimento, todas com suspeita de Covid-19, não me deixou mais aliviado. Me perguntava por que não comprara máscaras N-95 antes de começar minha jornada… Eu havia tido duas das formas de contato. Mas pelo menos não precisaria me preocupar por três dias, pois não estaria transmitindo, ainda, caso tivesse sido infectado. Neste caso, o domingo, para mim, seria o temido 5o dia, quando os sintomas mais provavelmente se manifestariam. Minha ansiedade era grande.
Na quinta-feira de manhã nada de resultado do exame ( no dia seguinte saiu no jornal que a demanda nos laboratórios tinha aumentado 80% entre maio e junho). A médica sugeriu que fizéssemos um teste sorológico, que sairia mais rápido. Aí foi outra luta de primas e minha afilhada tentando achar um laboratório que fosse ao hospital coletar a amostra. Nenhum ia: não querem invadir a área de outro, já que normalmente cada hospital tem um laboratório terceirizado que funciona lá dentro. O Anis Rassi é uma exceção pois seu laboratório é próprio - só que não fazia o exame. Achamos um que ia mas já estava com a rota pronta e não tinha como passar por lá. Um outro iria no dia seguinte mas só daria o resultado dois dias depois... Voltamos pro que não teve como ir, iriam tentar fazer um encaixe para a manhã seguinte. Nele, o resultado sairia no mesmo dia. Já era noite... Se tudo corresse bem, a tia ficaria só mais uma noite e a manhã do dia seguinte aguardando a internação na UTI. Minha melhor amiga, percebendo a angústia em que me encontrava, separou um tempo no início da noite para me dar atenção. Ainda bem. Só aí percebi como estava com os sentimentos reprimidos. Relaxei e tive novo ânimo.
Minha afilhada é uma garota obstinada. Resolveu entrar no site do laboratório mais uma vez, às 21h. Por sorte, o resultado tinha acabado de sair. Quando me ligou eu ainda desabafava sendo atendido por minha amiga. Retornei a ligação em seguida. Entrei no carro, fui até a casa dela, peguei o resultado impresso e deixei no hospital às 22h. Agora era esperar conseguirem a vaga. A recepção continuava cheia. Voltei para casa.
Acordei com o telefone tocando às 2 h. Precisava estar no hospital em uma hora para acompanhar a ambulância. Tomei um café e fui. Agora o movimento estava menor. Metade dos lugares liberados das longarinas estavam desocupados, mas mesmo assim, preferi ficar na calçada esperando. Uma hora depois a ambulância chegou. O médico me autorizou acompanhar enquanto a removiam. Ela, que estava dormindo, acordou mas nem viu que eu estava lá: deve ter pensado que eu era do estafe do hospital: agora usava um protetor facial profissional, presente da afilhada que acabara de ganhar. A ambulância saiu, segui um pouco depois mas a perdi de vista. O Hospital Garavelo era em Aparecida de Goiânia, a 30 km de distância.
Quando cheguei, a ambulância já tinha ido embora. O recepcionista me orientou que aguardasse a enfermeira vir falar comigo. Eram pouco mais de quatro horas. Fiquei na calçada, embora estivesse frio, para poder tirar a máscara um pouco e aliviar a dor nas orelhas. Só tinham sobrado as piores máscaras que tenho: o elástico é frouxo, tive que dar nós para ajustarem no rosto mas ficam apertadas e como são muito finas, uso duas…
Enquanto isso, chegou uma mulher aos prantos, tinham ligado para que trouxesse os documentos do marido e comprovante de endereço. Ela queria que o recepcionista confirmasse a morte, porém ele não tinha como, só cumpria a ordem recebida e ligava. Quem viria conversar seria o médico ou a enfermeira, a única solução era aguardar. Ela disse que eram do Paraná, caso não houvesse velório precisaria avisar à família. Não adiantou, o recepcionista não podia fazer nada. Na calçada, o motorista de Uber que a trouxe, me vendo com o protetor profissional, achou que eu trabalhava no hospital. Estava preocupado: temia que ela também estivesse doente e pudesse ter infectado seu carro...
De tempos em tempos eu entrava na recepção - maior e mais arejada que a de Goiânia - aguardando a enfermeira. Por volta de 6h ela veio e me entregou as roupas da tia. Por ora, pela avaliação que fizeram, não era caso de UTI. Se piorasse e fosse necessário, a transfeririam para uma, tinham disponível. Nisso, já havia mais familiares de vítimas fatais na sala. Uma senhora e duas ou três moças de uma mesma família, dois homens altos e fortes de outra. O pedido de confirmação da morte do familiar de cada um deles aos jovens recepcionistas era recorrente e a resposta deles - que agora eram outros, pois o turno da noite tinha terminado às 7h - era a mesma: o médico desceria para falar com eles.
A enfermeira tinha pedido que eu comprasse chinelos e os medicamentos de uso contínuo da tia. Bobeei e não perguntei quais eram. Pedi ao recepcionista para ligar pra ela perguntando, mas ele não conseguia localizá-la pois minha tia não estava na enfermaria onde o sistema dizia que ela deveria estar. Por fim, minhas tias lembraram os nomes dos remédios. Saí para comprar. Quando voltei, perto de oito horas, o clima tinha esquentado. Os familiares dos mortos reclamavam da falta de respeito que era terem ligado para eles de madrugada, fazendo-os saírem às pressas para o hospital e ficarem ali por horas, sem que confirmassem o que tinha acontecido. Até uma viatura da PM tinha aparecido, não sei se chamada pelos recepcionistas. Felizmente o médico chegou e começou a atendê-los. Mas ainda teve uma família impaciente para quem o atendente precisou explicar que o médico já estava com a primeira família, que iria atendê-los em seguida mas era um atendimento que demorava. Como os recepcionistas não sabiam onde minha tia estava, escrevi seu nome no saquinho e deixei com um deles. Comentei que até então eu pensava que o pior trabalho que conhecia era atendente de call center, mas o deles ganhava.
Dormi um pouco. Quando acordei, no grupo que tinha criado já havia duas ou três indicações para que eu tomasse logo Ivermectina ou o Kit Covid, que tinham sido muito recomendados por um padre e médicos. Agradeci e disse que não tomaria, apenas seguiria a recomendação de isolamento por 14 dias. Usando dados da Secretaria da Saúde de Goiânia que estavam em matéria de O Popular expliquei que na imensa maioria dos casos, uns 90%, a infecção não traz sintomas mais graves. Ou seja, pode tomar sonrisal, chá de hortelã, comer pipoquinha, canja de galinha ou paçoquinha, mas desde que o doente se hidrate, faça repouso e tome um antitérmico, vai se sair bem. Os outros 10% irão para atendimento mais intensivo, sendo uma parte para ventilação e destes, um percentual desenvolverá quadros mais graves, eventualmente fatais. Concluí dizendo que torceria, primeiro, para não ter sido infectado e, caso contrário, que tivesse sintomas brandos.
Era meu 3o dia, já estaria transmitindo. Comecei a rotina da quarentena, com cuidados extras para proteger meu filho que está comigo no apartamento: limpeza do banheiro a cada vez que usava, separei sabonete, creme dental, xampu e toalha de rosto, passei a usar máscara ao cozinhar ou quando conversávamos ou, sem ela, a manter a distância acima de dois metros.
Agora era preciso rastrear os contatos da tia.Eu sabia da faxineira, que iria na quarta mas eu tinha pedido que a tia adiasse. Quando a busquei em casa já era meio da manhã e não havia mais ninguém no apartamento, aparentemente não tinha ido. No entanto, os sintomas da tia tinham começado na terça-feira anterior, ou seja, desde domingo ela já estava transmitindo. Ninguém no grupo de zap sabia onde a tia tinha estado naqueles dias. Mas ela ia quase diariamente à casa onde moram uma outra tia, que tem uma cuidadora, e um tio. Eu tinha ido lá depois da internação, para deixar a bolsa. A cuidadora abriu o portão e me contou que estava preocupada pois era diabética e cardíaca e na quinta-feira, tinha tido contato direto com a minha tia doente pois ela havia passado por lá e estava com sintomas muito fortes. Disse também que tinha um primo que estava com Covid-19, intubado, e que seu filho estava em quarentena, determinada pela fábrica de refrigerantes onde trabalha.
No sábado de manhã outra prima, filha do tio, esteve lá e levou todos para fazer exame: a tia, o tio, a cuidadora e a filha pré-adolescente da tia internada. Por conta da demanda gigantesca, só conseguiu o teste rápido. O tio e a menina deram negativo, a tia deu que já tinha tido a doença e a cuidadora, que estava doente. A liberaram para ficar em casa, fazendo o autoisolamento. A prima que os levou ia ter que, como eu, fazer quarentena.
Como não são permitidas visitas, para evitar a contaminação, avisam na internação que devemos ligar todas as manhãs para obter o boletim médico, e que um médico ligaria à tarde com mais detalhes. Começou aí a rotina diária de saber a condição da tia: diurese ok, pressão ok (mas ficaria alta em alguns dias - é hipertensa), temperatura ok, respiração espontânea- não foi intubada, estado regular, acordada. O médico do dia ligou algumas vezes, depois as ligações passaram a ser feitas por psicólogas. Uma vez mandaram um áudio da tia pelo zap, outra, um vídeo. Além do que consta do boletim, minha prima tem conseguido que passem a taxa e a quantidade de litros de oxigênio que ela recebe, cuja variação diária, junto com a pressão, virou a obsessão e fonte de sobressalto do grupo de zap, quando houve piora.
O domingo, 5o dia, foi de expectativa. Vinha medindo a temperatura quatro vezes por dia. Na primeira vez que usei o termômetro digital, estava marcando menos de 36. Comprei outro. Usei até apitar, de novo, menos de 36 e batia com o primeiro. Não explicam que é preciso manter no lugar por dois minutos.Aí mediu certo e, felizmente, não tive febre nenhum dia. O dia passou sem qualquer sintoma. Alívio enorme.
Em relação à outra tia, seria preciso uma cuidadora temporária e no meu curso não ensinavam como proceder neste caso. Domingo à tarde liguei no serviço de atendimento humanizado da prefeitura para pegar orientações. A atendente inicial sabia as regras básicas, mas era preciso de informações mais específicas, por exemplo, caso ela fosse contactante, poderia ficar lá? E nesse caso, que cuidado tomar? Ela me passou para uma médica, que, muito atenciosa, me explicou o que queria. Comentei de como estava surpreso de, embora fosse contactante há quatro dias e tivesse assinado me responsabilizando pela paciente, nos hospitais ninguém me deu nenhuma orientação, nem recebi ligação de alguém da prefeitura. Aliás, nem um atestado, caso precisasse comprovar que a estava acompanhando, eu tinha conseguido. Ela explicou que no caso dos doentes atendidos pelo SUS, é seguido um protocolo da atenção primária, que determina a emissão de atestados para todos os residentes na mesma casa do doente, para que façam a quarentena, durante a qual recebem acompanhamento do posto de saúde da família da sua região. Nos hospitais privados, contudo, não há regra, cada um faz do seu jeito. Para poder ter um um material impresso dos cuidados que havia explicado, como pedi, ela me passou o nome do protocolo, que baixei pela internet.
Avisei ao pessoal, pelo grupo, das orientações para a nova cuidadora, e que avisassem a que estava afastada para, caso ainda não o tivesse feito, avisar no PSF que tinha testado positivo, para que pudessem confirmar o diagnóstico do teste rápido e a acompanharem durante o autoisolamento.
À noite terminei a segunda parte do curso da Johns Hopkins, que trata de como lidar com as pessoas ao ligar para fazer os contatos, para conseguir uma boa comunicação, respeitando sua condição de sensibilidade num momento como esse. Quanto à doença, as considerações são as que vi na primeira parte do curso e já mencionei.
Desta segunda parte, de todas as considerações a fazer, ao ligar, a essencial, que falta no Brasil: assegurar que a pessoa tenha condições de se isolar, primeiro perguntando sobre as condições de moradia e sobrevivência e, segundo, informando sobre serviços comunitários onde possa obter alimentação, remédios e, até, moradia provisória, para sair de casa e não contaminar outros moradores. Fiquei sabendo que nos EUA, além do 911, existe o 211 (embora um novo documentário do Frontline, Covid's hiden toll, mostre que entre os trabalhadores na agroindústria não houve esse cuidado). Nesta hora, vem à mente as filas e aglomeração no transporte público e para conseguir o auxílio emergencial, na Caixa, além de casas lotadas e pequenas, onde moram várias pessoas, quando muito em quartos separados.
Logo de manhã insisti no grupo para tentarem localizar a faxineira. Se ela tivesse ido na semana anterior, já estaria no fim do período de 14 dias que deveria ter feito quarentena, não adiantaria muito. Por fim, conseguiram ligar para ela. Minha tia havia adiado de quarta-feira para sábado, ou seja, a faxineira tinha ido ao apartamento e manuseado as vestimentas e roupas de cama sujas. Então, passamos as mesmas orientações para ela: fazer quarentena e procurar o PSF para fazerem o acompanhamento. Além disso, minha tia fez uma transferência de valor para ajudá-la a se manter. Na quinta-feira, exatamente o quinto dia após a faxina, ela avisou que tinha apresentado sintomas. Felizmente, no domingo já estava bem, sem sintomas.
Descobrimos também que a tia tinha ido ao banco mas não conseguimos descobrir em qual agência, nem quando exatamente.
Nos dois hospitais por que passei ao longo dos dias 8 a 10, há duas semanas, o que percebi foi recepcionistas, médicos e enfermeiros exaustos com a sobrecarga que já existia, mesmo ainda havendo vagas para internação em UTI e enfermaria. Ou seja, não havia colapso por falta de leitos, mas era evidente que estávamos numa situação de fadiga dos profissionais da área.
Além disso, exceto por um cartaz da Prefeitura de Aparecida com um protocolo de atendimento aos pacientes com suspeita de Covid-19, não vi nenhum cartaz, folheto ou qualquer outro material informativo sobre como deveria proceder após ter tido contato com um doente Covid-positivo, tampouco recebi alguma orientação de médicos, enfermeiros ou recepcionistas. Cada um precisa buscar por conta própria se informar, já que fora do mundo virtual, ou dos alertas com Drauzio Varella que agora são veiculados na Globo, não há nada ostensivo.
A maior prova do efeito catastrófico do desconhecimento sobre os cuidados preventivos ( e da falta de rastreamento e da oferta de condições para as pessoas se isolarem) e da falta de testagem suficiente é a reportagem que li no Popular, na madrugada de sexta, enquanto esperava a ambulância: de que a contaminação intradomiciliar preocupa as autoridades. No inquérito sorológico em Goiânia foi constatado que 50% dos familiares de quem testou positivo também estavam infectados, enquanto na população em geral a taxa é de 2%. As pessoas se contaminam em casa, com parentes e amigos. No caso da reportagem, 19 pessoas estavam doentes e 11 eram casos suspeitos, sendo que uma já havia morrido e outra estava intubada. A origem da contaminação teria sido o velório de uma familiar, em junho, que tinha câncer, foi internada e apresentou sintomas, morrendo em seguida, mas que por não ter diagnóstico de Covid-19, não seguiu o protocolo no enterro. O Secretário de Saúde de Aparecida de Goiânia disse que muitas pessoas estavam "fazendo o isolamento social de forma errada dentro de casa. Tanto que também notou um aumento dos casos de contaminação intradomiciliar na cidade". Já tinha lido outras matérias que saíram antes, com 3, 4 mortes na mesma família… Comentei nos dois hospitais. Em um, me disseram que haviam morrido ali cinco pessoas da mesma família. No outro, quatro.
A tia segue internada desde o dia 10, com comprometimento do pulmão e estado geral regular. A oxigenação baixou, passou dois dias na UTI, mas sem intubação. No sábado, quando decidiram mudá-la da enfermaria, um primo, que não está no grupo que criei, falou num outro, maior, antigo, de que saí há tempos, que devíamos exigir que dessem cloroquina para ela; que estava provado que era a única coisa que curava e, ainda por cima, citando um dado falso de que o uso do remédio em qualquer etapa da doença é protocolo em países como França e Itália. Caso se recusassem, era para conseguir uma decisão judicial. Pedi que mandassem para ele a reportagem que saíra na Folha, no sábado, dia 18, sobre orientação da Sociedade Brasileira de Infectologia de ser "urgente e necessário que a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da Covid-19", a entrevista com o infectologista Boaventura Braz de Queiroz, que tinha saído em O Popular naquele dia, comentando sobre sua recuperação da Covid-19 e de não administrar cloroquina ou Kit Covid aos seus pacientes (Todo mundo acha que pode tratar de pacientes com Covid-19) e ainda, reportagem de O Popular, da terça-feira, dia 14, sobre o médico que defendia esses medicamentos e agora estava internado com Covid-19. Encerrei o assunto dizendo que como eu era o responsável pela tia não ia autorizar darem cloroquina. Que se alguém quisesse, podia me processar. Estaria esperando. E, por fim, que meu primo estava louco.
Ainda estou chocado em como as pessoas em geral ignoram ou desconhecem o que interessa para evitar que a doença se propague, única forma de eficaz para diminuir o número de doentes: as orientações para o autoisolamento e a quarentena, em caso de sintomas da doença ou de contato; quais situações o caracterizam, e, em especial, não sabem que pessoas sem sintomas também transmitem a doença, o que torna qualquer situação que envolva contato com alguém sem sintomas um risco. Muitos, contudo, indicam fármacos que não são referendados nem pelos infectologistas, nem pela OMS, por não terem efeito nenhum em relação à doença. Como disse no grupo: a única solução é não ficar doente.
Nesse sentido, é incrível que não haja uma campanha de orientação ostensiva, para que cada pessoa saiba de cor essas informações: tv, rádio, panfletos, cartazes, carros de som na rua.... Se os hospitais não dão conta, a prefeitura deveria deixar alguém de plantão para fazer isso: são locais onde estão indo pessoas com sintomas, com suspeita de estarem doentes.
Mas fazer com que creiam na mentira de que existe um remédio que evita o agravamento ou mesmo que cura a doença é uma forma de reforçar a confusão na cabeça das pessoas e levá-las a ficarem com menos medo de sair de casa e assim, resistirem menos ao retorno às as atividades, que está sendo feito segundo "protocolos sanitários". Discurso às claras que se consolida graças às ações e omissões do Ministério da Saúde e de outras autoridades do governo ou de áreas da medicina, mas principalmente, por meio de uma rede subterrânea de criadores e propagadores das informações distorcidas que o fundamentam, um esgoto que só vemos quando transborda e chega até nós.
Como contrapartida à vitória dessa narrativa que omite os critérios definidos pela OMS para se considerar viável o retorno, seguidos em outros países, continuaremos presos em casa, quem pode, e expostos à doença, quem não. Estes, ao que tudo indica, seguindo firme como vítimas da estratégia não declarada - mas evidente -, de atingir a imunidade coletiva pelo contágio, e não pela vacina que ainda virá.